terça-feira, 13 de outubro de 2009

e espaços no Rio de Janeiro de João do Rio”.

A última década do século XIX esteve marcada por mudanças profundas para a nossa sociedade. A Abolição e a República foram marcos deste século que transformaram toda a ordem social, política e econômica vigentes até então. Outras mudanças, como as dos campos cultural e mental, também fizeram parte deste processo histórico, porém de forma mais lenta, sutil e complexa.
É também no fim de século XIX - a 5 de agosto de 1881 – que nasce João Paulo Alberto Coelho Barreto, o João do Rio. O João que de nome tão comum acabou por ser incomum, fez de seus olhares atentos e astutos para a cidade do Rio de Janeiro a sua marca.
O pseudônimo João do Rio nasce em 1903, na coluna “A cidade” do jornal Gazeta de Notícias, que contava também em seu corpo de jornalistas com Coelho Neto, Olavo Bilac e Emílio de Menezes. “A Gazeta era o jornal de vanguarda. Anunciador do novo tempo, foi o primeiro a trazer para o Brasil o modo de diagramação europeu e, junto, a divulgação das novidades de Paris e Londres” (RODRIGUES, 2000, p. 38). João do Rio foi singular no jornalismo carioca, apostava na investigação, anunciava o novo tempo, dava ao jornalismo a marca da literatura.
João do Rio ia às ruas buscar sua inspiração, observava os tipos urbanos e seus universos, era como um flâneur1 a capturar pelas ruas imagens, pessoas e pequenas cenas. Um exercício que envolvia não apenas a atividade jornalística ou literária, mas também a de historiador. Barreto fez do cotidiano da cidade e de seus tipos sociais documento. As reportagens de As religiões do Rio, para a Gazeta de Notícias, exemplificam a perspectiva por ele adotada. Nesta série, editada em livro no fim de 1904, o autor faz um verdadeiro inventário das religiões do Rio. Visita templos, terreiros, centros, casas e igrejas, descreve cultos, investiga rituais e relaciona diversas manifestações culturais de cunho religioso.
Em seu livro As religiões do Rio, o autor expõe ao leitor sua metodologia: interroga, perambula e observa criticamente pelo Rio de Janeiro. Assume a cidade como palco da diversidade e percebe a importância de descobrir diferentes tipos sociais. Acaba por romper categorias canonizadas como, por exemplo, a de o Brasil ser um país essencialmente católico. Utilizando a frase de Montaigne, como epígrafe, aparece em acordo com a antropologia2, faz um verdadeiro exercício antropológico através da cidade do Rio de Janeiro, pois além de investigar e observar a cidade, busca nela o que é diferente, se interessa pela alteridade e faz dela parte de seu contexto literário/ jornalístico.
Certamente que João do Rio em seu jornalismo literário, levanta aspectos relevantes sobre a época, seus contemporâneos e a cidade. A sua abordagem jornalística cultiva um estilo marcado pela presença da vivência pessoal, da experiência direta do cotidiano da cidade.
João do Rio dá alma às ruas, mas também expõe a sua alma ao mundo; na verdade, revela a alma do homem moderno, aquele que vive na cidade. Suas temáticas giram em torno da “subjetividade individual que enfrenta o ritmo da metrópole moderna e que nela encontra, ao mesmo tempo, a sedução e a ameaça” (VENEU, 1990, p. 230).
O Rio de Janeiro do início do século XX era, com certeza, uma cidade sedutora. As pessoas passeavam pelos parques, livrarias, boticas e cafés, freqüentavam os teatros e os salões. Era uma “boêmia dourada”, como expõe Brito Broca (2005), que passava a transcender os muros de suas casas. A modernidade chegou junto com o bonde e com o automóvel, ou seja com a velocidade, que permitia uma maior mobilidade às pessoas, mas também ocasionava maior vertigem, pressa e escassez de tempo.
Já na última década do século XIX, a cidade começava a se ver alterada por um crescimento verdadeiramente vertiginoso. Novos prédios, ruas, avenidas e multidões3, que também passaram a fazer parte do cenário urbano. Transeuntes indo e vindo do trabalho, apressados pelo relógio que não pára. São negros e brancos, cariocas, pernambucanos e cearenses; italianos, chineses, sírios ou portugueses; misturados, negociando seu espaço, apropriando-se da cidade e fazendo dela uma mistura de sons, cores, costumes e linguagens.
A idéia de multidão é paralela a de modernidade, está associada à livre circulação de pessoas, as massas, que no vai e vem do cotidiano assustam e/ou confortam com sua força coletiva, mas também garantem o anonimato, outro conceito caro à modernidade, uma vez que é a expressão da vertigem da metrópole, tão imensa em suas multidões, e ao mesmo tempo tão solitária em seu individualismo e em sua velocidade, uma espécie de passaporte para a liberdade de ir e vir.
A multidão que por um lado uniformiza as pessoas, por outro estimula a diferenciação, uma vez que pode permitir o espetáculo daqueles que querem ou conseguem se destacar neste novo universo populoso. Neste sentido a multidão tanto seduz quanto ameaça.
É neste contexto que está João do Rio, dentro da multiplicidade da cidade, do seu movimento, das suas multidões. Ele não é apenas um transeunte no vai e vem automático da metrópole moderna, é um artista, um flâneur, passeia pela cidade lançando seu olhar crítico. Descobriu que tudo pode ser literatura, e extrai do cosmopolitismo da cidade toda a sua inspiração. Circula pelas altas rodas de intelectuais, faz parte do mundo do luxo e da moda. Muito elegante, sempre impecável, é o que deixa perceber a biografia escrita por João Carlos Rodrigues (1949). Por outro lado, participa intensamente dos subterrâneos da cidade4. Em A alma encantadora das ruas, leva o leitor para um mundo que parece se esconder diante da metrópole maquete idealizada no governo Rodrigues Alves (1902-1906). Com João do Rio passeamos pelas ruas atrás da miséria, descobrimos Pequenas profissões5, conhecemos As mariposas de luxo6 e As mulheres mendigas7, experimentamos o cotidiano dos Trabalhadores de estiva8, ou até descobrimos as Visões d’ópio9.
Esta nova paisagem urbana foi sendo absorvida pela na literatura, que neste início de século XX emerge interligada a vida mundana. Os escritores escreviam a cidade, exploravam seus contornos e acabavam por acentuar seus antagonismos: Lima Barreto, Paulo Barreto (João do Rio), Machado de Assis, Coelho Neto e Olavo Bilac são exemplos de talentosos literatos que abordaram a cidade, cada um com seu estilo, seus valores pessoais e literários. Este rico circulo intelectual possibilitou diferentes olhares e percepções sobre a cidade.
A partir da iniciativa inovadora de João do Rio, presente na citação acima, o que muda não é apenas a crônica e o estilo de fazê-la, mas também a reportagem, que neste momento passava a contar com a entrevista e com a pesquisa de campo. A realidade jornalística também começava a sair das redações.
Pensando mais uma vez em João do Rio assumindo o ofício de historiador é fácil perceber a sua contribuição para a história oral, em grande medida, construída através de entrevistas e depoimentos, e para a história cultural e social, já que ao perambular criticamente pelas ruas fazendo entrevistas, colhendo depoimentos e vivenciando realidades, dá às suas crônicas – reportagens um valor historiográfico.
O livro O momento literário de João do Rio demonstra novamente a diversidade de suas perspectivas literárias. Este texto, de 1907, foi organizado a partir de entrevistas realizadas com 37 autores desta primeira década do século XX. Um inquérito com o que para ele seria a nata da literatura brasileira, e que pretendia traçar um panorama ou perfil literário da época. Como comenta Brito Broca, em A vida literária no Brasil – 1900 (2005), o escritor teria se inspirado em Jules Huret, que havia publicado, em Paris (1891), um inquérito investigando a situação do Naturalismo. É importante perceber o quanto a iniciativa de João do Rio demonstra sua vocação para crítico literário.
As entrevistas do Momento literário dão ao leitor uma oportunidade de ler as palavras daqueles autores sobre sua formação e preferências literárias, também acabam por revelar aos leitores mais sensíveis, o cotidiano destes escritores brasileiros que são lidos e reverenciados até os dias de hoje. É um privilégio poder participar de uma conversa entre João do Rio e João Ribeiro “à porta da Garnier, às três da tarde, hora em que aparecem os literatos e os diplomatas, para a conversação de praxe” (RIO, João, 1994, p. 20).
Uma pena que alguns literatos importantes da época não tenham percebido a significação da obra, e portanto, não tenham aceitado participar das entrevistas, como por exemplo Machado de Assis. Na verdade, para Machado, a relação entre literatura e jornalismo não era vista com bons olhos. Conservador, via esta variante literária como empobrecedora da “verdadeira” literatura. O momento literário tinha também como objetivo trabalhar exatamente esta questão: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?” (RIO, João, 1994).
No quadro que se procurou esboçar a imprensa também havia se transformado. As inovações tecnológicas, o aumento do número de leitores e o crescimento da cidade exigiam dela mais velocidade, mais reportagens, mais artigos e crônicas. Mais cores, charges e caricaturas. Certamente isto influenciava na vida dos escritores, mas também a sua obra, pois havia um compromisso, às vezes diário, de fornecer escritos para os jornais. A partir de 1900, os periódicos foram optando por reportagens e notícias, sacrificando assim, os artigos. Não há dúvidas de que este fator alterou a atitude literária dos escritores que escreviam nos jornais. “Foi ao que se amoldou logo um João do Rio, fazendo da reportagem um gênero literário e vindo assim a servir simultaneamente ao jornalismo e à literatura” (BROCA, 2005, p. 288).
Em Cinematógrafo (1908) e A alma encantadora das ruas, livro editado neste mesmo ano, João do Rio assume definitivamente esta postura investigativa e inovadora dentro da literatura e da redação jornalística. Vai às ruas, penetra em diversos universos e se consagra. Faz-se respeitado pelo público e pela crítica. Em 1910 consegue sua vaga na Academia Brasileira de Letras. Paulo Barreto e seu estilo passam a ser reconhecidos como parte fundamental para a literatura da época.
“No discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, João do Rio se referia ao dépaysement10” (BROCA, 2005, p. 55). Olhando, mais uma vez, o mundo ao seu redor, percebia a decadência dos cafés, da boêmia intelectual das ruas, agora vertiginosas com o vai e vem dos automóveis e das multidões. A literatura passava a pertencer a um universo mais requintado, agora fazia parte dos salões, era uma “boêmia dourada”. “A literatura era cultivada como um luxo semenlhante àqueles objetos complicados, aos pára-ventos japoneses do art nouveau” (BROCA, 2005, p. 55).
Este início de século XX foi especialmente um momento de transformação. Em todas as esferas: políticas ou econômicas, culturais ou sociais, individuais ou coletivas. O Brasil era um novo país, perdera características e lógicas coloniais e conquistara a modernidade. O Rio de Janeiro, por toda a sua historicidade, por ser a capital, certamente foi o pólo irradiador e receptor das grandes transformações. Neste quadro, João do Rio, foi o grande inovador da crônica jornalística, com seu talento literário aumentou os contornos da cidade e lançou novos olhares e interpretações possíveis à realidade carioca.
Fernanda Marques
girassollle@yahoo.com.br

Notas
1. Flâneur, para Charles Baudelaire, em Sobre a Modernidade, um observador apaixonado, para quem estar fora de casa é na verdade, sentir-se em casa. O Flâneur deve ser um artista, ter alma de artista, e como coloca Antônio Edmundo, perambular com inteligência.Walter Benjamin acrescenta ainda, a figura do flâneur, o emblema do burguês do século XIX.
2. Ciência humana que estuda o homem. Quando relacionada à cultura, ou melhor, a alteridade cultural, que é o que neste trabalho é importante, muito bem coloca B.Malinowski: “A visão funcional da cultura repousa no principio de que em qualquer tipo de civilização, cada costume, objeto material, idéia ou crença, satisfaz alguma função vital, assim como certas tarefas realizadas representam uma parte indispensável para todo o trabalho”.
3. “As multidões”, conceito muito caro ao estudo da modernidade. Está relacionado à massa trabalhadora, a circulação de pessoas pela cidade. As multidões podem ser agasalhadoras dos solitários, mas também ameaçadoras aos economicamente mais abastados. “A multidão é o véu, através do qual a vida familiar se move para o flâneur, em fantasmagoria” (BENJAMIN, Walter. Écrits Français,“Paris, Capitale du XIX e siècle”, p. 301).
4. É importante compreender subterrâneos da cidade como “cidade paralela” e contrastante com o caráter opressor da cidade maquete, idealizada pela reforma Pereira Passos. Essa cidade que se manifestava escondida, conseguia burlar a opressão sofrida em prol de um ideal de civilidade. Suas manifestações conseguiram ampliar e transformar a memória cultural carioca.
5. Esta crônica foi publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 6 de Agosto de 1904, aparecia com o título de “Profissões exóticas”. Posteriormente foi selecionada para o livro A alma encantadora das ruas com o novo título.
6. Esta crônica foi publicada na Gazeta de Notícias em 23 de Março de 1907. Faz parte do livro A alma encantadora das ruas. Seu título, “As mariposas de luxo”, se refere as mulheres sem dinheiro que todos os dias flertavam as vitrines das butiques de luxo, acompanhando a última moda parisiense que aparecia estampada nas vitrines cariocas.
7. Esta crônica foi publicada na Gazeta de Noticias em 30 de Maio de 1904. Foi a primeira publicação da série “A pobre gente. Entre os mendigos”. Faz parte do livro A alma encantadora das ruas.
8. Esta crônica/ reportagem foi publicada na Gazeta de Noticias em 19 de Junho de 1904. Faz parte do livro A alma encantadora das ruas.
9. Esta crônica foi publicada na Gazeta de Noticias em 7 de Janeiro de 1905. Retrata a vida dos chins no rio do início do século XX. Faz partedo livro A alma encantadora das ruas.
10. Expressão de se refere a um deslocamento do ambiente carioca. “A boêmia dos cafés se transforma na boêmia dourada dos salões” (BROCA, 2005, p. 55).

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